Dr. Ivanhoé Stuart

          Receituários alinhados sobre a mesa, caneta ansiosa em punho e carimbo novinho no bolso do jaleco branco com o orgulhoso bordado “Médico”. Achava que estava pronto para atender meu primeiro paciente.

         Fantasiava que pela porta poderia entrar uma senhora com uma raropatia mirabolante – conseguiria chegar a um diagnóstico? Ou uma criança de colo em dificuldade para respirar – faria o suficiente para aplacar sua fome de ar? Quem sabe uma vítima de um grave acidente – haveria tempo de encaminhá-la para uma cirurgia salvadora?

          Naquele único hospital de uma pequena cidade do interior, poderia atender quase tudo, inclusive nada. Mas foi Seu José que entrou cerimonioso pela porta, tirou o chapéu de palha em sinal de respeito e pediu para sentar:

           – Claro, pode sentar. Como posso te ajudar?

           – Doutor, eu vim renovar a receita do meu remédio de dormir.

           Não lhe importava a pressão alta, nunca se preocupou com o diabetes e as taxas de suas dívidas lhe tiravam mais o sono que as de colesterol. Precisava de ajuda para esquecer. Naquele momento a ingenuidade do jovem médico se chocou com o mundo moinho do compositor Cartola.

            Na faculdade aprendemos os efeitos nocivos de adição e tolerância relacionados ao uso abusivo de benzodiazepínicos, classe a que pertencia seu remédio. Não obstante, sob a superfície inerte da farmacologia, o escrutínio da alma revelou que um problema escondia outro. O primeiro acalento do meu paciente diante da adversidade foi o álcool e o Diazepam era seu expediente para enfrentar o etilismo.

            Eu sabia que ainda não havia nenhum vínculo entre nós, mas existia uma oportunidade de cuidado. Abri a gaveta que guardava o receituário azul e prescrevi medicação suficiente até o nosso próximo encontro. Pedi para fazer medidas seriadas da pressão e coletar alguns exames de laboratório nesse intervalo. Ele agradeceu, colocou o chapéu de volta na cabeça e foi a última vez que vi Seu José. Desapareceu como fantasma e sua pálida memória me assombra com a lição de Hipócrates, o pai da Medicina: “a vida é breve, a arte é longa, a ocasião fugidia, a experiência enganosa e o julgamento difícil.”

Imagem: Van Emelen, Adrien Henri Vital – Homem com Chapéu e Cigarro de Palha

Ivanhoé Stuart

Ivanhoé Stuart

Cardiologista

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